A POESIA DE JOSÉ SAMPAIO
GILFRANCISCO: jornalista, professor da Faculdade São Luís de
França e membro do Instituto Histórico e Geográfico. gilfrancisco.santos@gmail.com
O poeta José Sampaio é um eterno
estranho no ninho sergipano. A clareza da linguagem de sua obra é a poética da
liberdade e da transgressão, que expõe contradições e paradoxos, está dotada de
uma fúria verbal que se manifesta em versos como quem morre. Recentemente,
durante o lançamento dos livros Dios Ensangrentado e Crepúsculo de Esplendores,
do poeta Santo Sousa, lançados em 2 de junho, no salão do Residencial Emanuel
Fonseca, belíssimo evento com recital de poesia e música, conheci Danilo
Sampaio, filho do poeta, apresentado por Amaral Cavalcanti. O teor da conversa
foi literatura e acabamos na obra de José Sampaio e ele me confidenciou o
desejo em ver a obra do pai, numa edição didática, preparada para estudantes.
O historiador e pesquisador
Jackson da Silva Lima, incansável pesquisador da literatura sergipana, sem
dúvida, é o descobridor do poeta sergipano José de Aguiar Sampaio (1913-1956),
pois a ele coube organizar e anotar dois livros importantes para a divulgação e
compreensão de sua obra: Esparsos e Inéditos de José Sampaio, 1967, e Poesia
& Prosa, 1992, ambos esgotados.
José Sampaio é um poeta de
grandeza incontestável, que elaborou uma obra singular, requintada,
extremamente rica em imagens e de vigorosa construção, referência fundamental
no cenário literário sergipano. Sampaio produziu poesia como processo de
iluminação ou poética iluminada pela lucidez. Sua poesia caracteriza-se por uma
reafirmação da imagem, do mundo como imagem, pelo fato de ser uma poesia de significados
e não de signos, uma poesia original, de profundo sentimento humano.
Latente, onde exercita o ofício
de contenção, com o objetivo de ultrapassar o lirismo e a musicalidade de seus
versos. Com muitas associações de imagens e simultaneidade, a linguagem
coloquial, produziu sempre uma poesia simples. Em linhas gerais, busca a
estrutura da linguagem e da realidade representada, do núcleo temático.
Em sua obra poética, de versos
espontâneos, fluentes, sentimos o gemer de uma dor, a agonia de uma alma enferma.
O poeta viveu numa época de desafios cotidianos, que necessitava enfrentar esse
desafio enquanto vivia, tanto no plano pessoal como profissional.
Tudo, porém, cheio de nobreza,
expresso num estilo gracioso. Nos seus textos apresentados estão, presentes sua
alma e angústia, pois sua obra é dotada de sensibilidade apurada, de imaginação
fertilíssima. O poeta José Sampaio produz o texto como sente, num equilíbrio
entre a inspiração e a expressão, entre a beleza que o rodeia e a beleza da
realidade, tudo isso acentuado de um penetrante espírito de observação.
Um poeta interessado no ideal de
justiça para todos os homens, procurando sempre estimar os humildes nos seus
poemas e na prática diária de seus atos. Foi um poeta social, comovido com os
sofrimentos do povo, como poeta e como homem. Militou na poesia social, cuja
temática centrasse na denúncia dos problemas, das desigualdades sociais do
país, inclusive colaborando, em 1938, na revista baiana Seiva, ligada ao
Partido Comunista.
O “poeta dos humildes” nasceu na
então Vila do Carmo, hoje cidade de Carmópolis, em 2 de maio de 1913, sendo
seus pais Gaspar Leite Sampaio e Honorina de Aguiar Sampaio, ambos pertencentes
à classe média.
Cursa as primeiras letras em sua
cidade natal e, nos anos 20, em Riachuelo, para onde seus pais se transferem.
Nos meados de 1930, José Sampaio freqüenta a redação dos jornais riachuelenses
Poliauto e O Riachuelo, tornando-se diretor-secretário do primeiro. Neste mesmo
ano, juntamente com José Menezes e Alfredo Sampaio, integra a Comissão de
Ornamentação do Cine-Teatro Riachuelense para a parte literária da festa
dedicada ao Dia do Crisântemo.
Em princípio de 1932, encontra-se
residindo em Capela, onde se estabelece com uma casa comercial. Um ano depois,
transfere-se para a capital e passa a trabalhar no comércio, além de ser
revisor e gerente de vendas do jornal A República.
Estabelecido em Aracaju, trava
conhecimento com jornalistas, intelectuais de esquerda, líderes estudantis e
sindicais, avançando nos seus ideais progressistas. Participa da vida cultural
intensa, das rodas literárias e da boemia, freqüenta as redações dos jornais e
se torna habitué dos bares e cabarés. É eleito, em 1936, suplente do Conselho
Fiscal da Associação Sergipana de Imprensa, quando também colabora assiduamente
em vários jornais estudantis ou alternativos.
Graças à atividade de
caixeiro-viajante, a qual desempenhou até 1945 (ano em que se casa com Jaci
Conde Dias e juntos tiveram os filhos Danilo e Liana), percorre todo o Estado
de Sergipe, estabelecendo contato direto com a gente do interior.
No final da década de 40,
transfere-se com a família para a cidade baiana de Feira de Santana, onde
compra um armarinho e participa das atividades culturais. No início de 1954,
visita Aracaju a convite do escritor José Augusto Garcez (1918-1992) e trouxe
os originais do livro Nós Acendemos as Nossas Estrelas, publicado meses depois.
No ano seguinte, agravam-se os
sintomas da doença que o levaria à sepultura. Vai ao Rio de Janeiro e a São
Paulo em busca da cura, mas o esforço é inútil: José Sampaio faleceu em Aracaju
a 4 de abril de 1956, vítima de câncer.
A sua bibliografia, de grande
importância para a literatura sergipana, é formada pelos títulos Nós Acendemos
a Nossas Estrelas, Aracaju, Movimento Cultural de Sergipe, 1954; Obras
Completas de José Sampaio, Aracaju, Livraria Regina/Movimento Cultural de
Sergipe, 1956; Esparsos e Inéditos de José Sampaio, Aracaju, Nova Editora de
Sergipe, 1967 e Poesia & Prosa, Aracaju, Sociedade Editorial de Sergipe,
1992.
Apesar do grande significado e
valor estético de sua obra, José Sampaio ainda não tem proclamado, na dimensão
devida, o reconhecimento da importância de sua poesia, que não aconteceu no
cenário nacional, a exemplo de conterrâneos como João Ribeiro, Sílvio Romero,
Tobias Barreto e Jackson de Figueiredo.
Confira alguns dos seus poemas,
cujo meu primeiro contato foi através do cineasta baiano Olney Alberto São
Paulo (1936-1978), de quem fui seu assistente no filme Festa de São João no
Interior da Bahia, dirigido por Guido Araújo, através do artigo A Morte de um
Poeta, por ele escrito e publicado n’O Coruja, 27, maio, 1956, em Feira de
Santana.
Dia que vem — 1935
Gente
passando a mão no rosto
para afastar o sangue
dos olhos vermelhos,
para avançar.
O velho imprestável
rejuvenesceu
pra grande luta
libertadora.
Na confusão,
a própria consciência
do grande ideal
morreu afogada
no sangue dos homens.
Agora a alegria
de querer matar
é o medo inconsciente
de morrer primeiro.
A tragédia sorrindo
um sorriso trágico.
Há risadas mudas
nas bocas mortas.
Que coisa impossível:
a dor cantando
o poema alegre
da liberdade.
E a nação
ressuscitará
sobre o montão
das pessoas mortas.
E se for mentira
a ressurreição?
A marcha das lágrimas — 1936
Continuou quebrando a paz da vida,
mãos alevantadas como gritos,
olhos alarmantes como a fome.
Onde estavam
a beleza da terra
e a alegria da felicidade?
As estradas
estavam avermelhadas
dos pés humanos que sangraram.
E toda aquela gente
morria de cansaço
atrás da paz e da beleza
porque
em proporção que acelerava a marcha
as estradas cresciam
na mesma crueldade inconsciente.
Mas uma mão estranha
acalentava a dor daquele povo.
Parece
que uma cidade santa
nascia nos sentidos
pois
os mais felizes que tombavam logo
morriam fitando com inveja
a marcha gloriosa.
Primeiro o pensamento
tinha feito a viagem
e a cidade existia
grande como um sorriso.
A paz
embalaria aquele povo.
A graça voltaria nas mulheres
e o amor constituiria
o sossego dos velhos
e a felicidade dos moços.
E brinquedos bonitos
acordariam a alegria dos meninos.
Entretanto,
os ritmos da caminhada
rolavam pelos caminhos
no mesmo rumor de choro
como línguas vivas.
A revolução das ruínas
O rumor que veio desta lembrança
amedrontou meu silêncio.
No meu modo de ver, pelo menos agora,
as ruínas se revoltaram debaixo dos edifícios novos.
São lembranças estranhas
de tudo que ficou debaixo do mais forte.
Há um sofrimento infinito nestes seres pisados,
mas não há choro nesse clamor subterrâneo.
As grandes dores
geram a alegria trágica do ódio.
É a decadência querendo levantar-se
para ressuscitar
na glória de suas causas de palha,
na felicidade dos seus homens brutos
e na alegria de sua antiga liberdade.
Geração que foi enterrada
querendo romper o túmulo dos arranha-céus
para apagar
todas as luzes da civilização.
A luta rasteirado que caiu
para nunca mais levantar.
Revolução infeliz,
tão infeliz que não morre
para viver das derrotas.
Luta impossível
contra o indiferentismo do tempo
e a ironia espontânea do progresso.
Meu pensamento, agora,
é a lembrança estranha
deste profundo anseio de liberdade
que estremece a cova das ruínas.
(1936)
Sarjeta
Eu olhei muito a sarjeta,
a água correndo mansa e clara,
sorrindo no cristal dos caracóis.
Mas, eu vi lá no fundo
a tristeza do lodo
cobrindo o chão de luto.
E me lembrei tanto da humanidade.
Por que é que não limparam
o fundo das sarjetas?
(1936)
As ruas
A palavra precisa ser simples,
como água,
ao alcance de qualquer ouvido.
Do ouvido das ruas,
porque as ruas possuem a maior força
e não chega uma voz despertando.
Mas quando as coisas foram ditas
na linguagem simples do povo,
as ruas não suarão tanto, inutilmente.
(1942)